sábado, 4 de maio de 2013

Apagão da família

Carlos Alberto Di Franco
A sociedade assiste, assombrada, a uma escalada de crimes ocorridos no âmbito de famílias de classe média. Transformou-se o crime familiar em pauta ordinária das editorias de polícia. O inimigo já não está somente nas esquinas e vielas da cidade sem rosto,  mas dentro dos lares. Mudam os personagens, mas as histórias de famílias destruídas pelo ódio e pelas drogas se repetem. A violência não se oculta sob a máscara anônima da marginalidade. Surpreendentemente, vítimas e criminosos assinam o mesmo sobrenome e estão unidos pela indissolubilidade do DNA.
A multiplicação dos crimes em família tem deixado a opinião pública em estado de choque. Paira no ar a mesma pergunta que Fellini pôs na boca de um dos personagens do seu filme Ensaio de Orquestra, quando, ao contemplar o caos que tomara conta dos músicos depois da destituição do maestro, pergunta, perplexo: “Como é que chegamos a isto?” A interrogação está subjacente nas reações de todos nós, caros leitores, que, atordoados, tentamos encontrar resposta para a escalada de maldade que tomou conta do cotidiano.
A tragédia que tem fustigado algumas famílias aparece tingida por marcas típicas da atual crônica policial: uso de drogas, dissolução da família e crise da autoridade. Não sou juiz de ninguém. Mas minha experiência profissional indica a presença de um elo que dá unidade aos  crimes que destruíram inúmeros lares: o esgarçamento das relações familiares. Há exceções, é claro. Desequilíbrios e patologias independem da boa vontade de pais e filhos. A regra, no entanto, indica que o crime hediondo costuma ser o dramático corolário de um silogismo que se fundamenta nas premissas do egoísmo e da ausência, sobretudo paterna. A desestruturação da família está, de fato, na raiz da tragédia.
Se a crescente falange de jovens criminosos deixa algo claro, é o fato de que cada vez mais pais não conhecem os seus filhos (e filhos também não se interessam por seus pais e avós). Na falta do carinho e do diálogo, os jovens crescem sem referencias morais e âncoras afetivas. Recebem boas mesadas, carros e viagens. Mas, certamente, trocariam tudo isso pela presença dos pais. Sua resposta é uma explosiva combinação de revolta e ódio. Psiquiatras, inúmeros, tentam encontrar explicações nos meandros das patologias mentais. Podem ter razão. Mas nem sempre. Independentemente dos possíveis surtos psicóticos, causa imediata de crimes brutais, a grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, mas mais cruel: a desumanização das relações familiares. O crime intra e extra lar medra no terreno fertilizado pela ausência. O uso das drogas, verdadeiro estopim da loucura final, é, frequentemente, o resultado da falência da família.
A ausência de limites e a crise da autoridade estão na outra ponta do problema. Transformou-se o prazer em regra absoluta. O sacrifício, a renúncia e o sofrimento, realidades inerentes ao cotidiano de todos nós, foram excomungados pelo marketing do consumismo alucinado. Decretada a demissão dos limites e suprimido qualquer assomo de autoridade (dos pais, da escola e do Estado), sobra a barbárie. A responsabilidade, consequência direta e imediata dos atos humanos, simplesmente evaporou. Em todos os campos. O político ladrão e aético não vai para a cadeia. Renuncia ao mandato. O delinquente juvenil não responde por seus atos.  É “de menor”.
Certas teorias no campo da educação, cultivadas em escolas que fizeram uma opção preferencial pela permissividade, também estão apresentando um amargo resultado. Uma legião de desajustados, crescida à sombra do dogma da educação não traumatizante, está mostrando a sua face perversa. Ao traçar o perfil de alguns desvios da sociedade norte-americana, o sociólogo Christopher Lach (autor do livro A Rebelião das Elites) sublinha as dramáticas consequências que estão ocultas sob a aparência da tolerância: “Gastamos a maior parte da nossa energia no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas.” O saldo é uma geração desorientada e vazia. A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm gerado uma onda de superpredadores. O inchaço do ego e o emagrecimento da solidariedade estão na origem de inúmeras patologias. A forja do caráter, compatível com o clima de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida. A pena é que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio.
O pragmatismo e a irresponsabilidade de alguns setores do mundo do entretenimento estão na outra ponta do problema. A valorização do sucesso sem limites éticos, a apresentação de desvios comportamentais num clima de normalidade e a consagração da impunidade têm colaborado para o aparecimento de mauricinhos do crime. Apoiados numa manipulação do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas de TV crescem à sombra da exploração das paixões humanas.
As análises dos especialistas e as políticas públicas esgrimem inúmeros argumentos politicamente corretos. Fala-se de tudo. Menos da crise da família e da demissão da autoridade. Mas o nó está aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de crueldade sem precedentes. É só uma questão de tempo. Já estamos ouvindo as primeiras explosões do barril de pólvora. O horror dos lares destruídos pelo ódio não está nas telas dos cinemas. Está batendo às portas das casas de um Brasil que precisa resgatar a cordialidade captada pela poderosa lente de Sérgio Buarque de Holanda (o pai do Chico) no seu memorável Raízes do Brasil.

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